
Quando adolescente, costumava fazer compras aos sábados em uma mercearia de esquina, próxima à minha casa. Era um pequeno comércio, igual a tantos outros, se não fosse pelo dono, o Sr. Ramon, um espanhol que viveu a infância em meio à sangrenta Guerra Civil e a adolescência em uma Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial. Apesar desses acontecimentos traumáticos, ele não era, nem de longe, uma pessoa retraída ou amargurada. Seus olhos eram vivos e brilhantes, e sua risada, contagiante. Acredito que muitos fregueses iam à mercearia somente para ouvir um pouco da filosofia daquele espanhol, embora houvesse outras mercearias nas redondezas, maiores e com mais variedade.
Aquelas pessoas, assim como eu, estavam ali para serem contagiadas pelo bom humor e pela alegria permanentes daquele senhor. Ele sempre tinha uma história interessante da época da guerra e possuía um raro talento para retratar situações difíceis de forma hilária. Após esses minutos de verdadeira terapia coletiva, todos saíam de lá mais leves e vendo a vida com outros olhos.
Mas um fato ocorrido naquela mercearia ficou gravado na minha memória. Em um desses sábados ensolarados, estávamos discutindo um episódio que, se não me engano, era o recém-instalado Golpe Militar, quando perguntamos ao Sr. Ramon sua opinião sobre os possíveis desdobramentos. Ele sorriu com um ar surpreso, admitindo que não sabia do que estávamos falando. A ironia é que ele usava os jornais com notícias sobre o golpe para embrulhar as mercadorias que vendia. Quando mostramos a manchete estampada na folha do jornal que ele ia usar, ele abriu um sorriso largo e respondeu, com aquele sotaque que aprendemos a admirar: “É que, quando vou começar a ler a manchete, sempre chega um freguês e eu já uso o jornal para embalar a mercadoria. Nunca dá tempo de ler”. Caímos na risada e balançamos a cabeça em concordância, entendendo o que ele queria dizer. Ele não era alienado e estava ciente do golpe.
Na verdade, entre todos nós, era quem melhor sabia o que estava acontecendo. Afinal, já havia vivido duas guerras devastadoras e mantinha a alma intacta. Não seria um golpe militar que o venceria. Ele continuaria vendendo seus produtos e distribuindo coragem todas as manhãs. Nada o impediria. Naquele momento, compreendi que a coragem define todas as outras virtudes. É preciso coragem para ser generoso. Coragem para ser justo. Coragem para dizer não. E, sobretudo, coragem para não desistir. Percebi, então, que o Sr. Ramon não era apenas um comerciante de víveres, mas um verdadeiro mestre na arte de viver.
Sinto falta dessa coragem e dessa presença de espírito atualmente, justamente no ambiente que mais precisa delas, o segmento corporativo. O humor do mercado oscila conforme a manchete de capa dos jornais, seja ela especulativa ou não.
Sob o efeito hipnótico da mídia, muitos empresários se sentem inseguros, amedrontados e paralisados. Isso me lembra, ainda que em tom de comparação simples, uma técnica para hipnotizar galinhas. Para quem não conhece, basta segurar uma galinha, empurrar seu pescoço até que o bico encoste no chão e, a partir do bico, traçar uma linha reta com giz no sentido contrário. A galinha permanece imóvel, fixada na linha, mesmo após ser solta. Esse exemplo evidencia como uma atitude pode nos levar ao medo ou à libertação.
O medo, como sabemos, é contagioso e assume diversas formas e discursos. Política e economia são partes de um mesmo organismo. Apesar disso, muitos países que hoje integram o chamado primeiro mundo conseguiram prosperar e alavancar suas economias mesmo em meio ao caos político. Nesses casos, os empresários foram protagonistas da grande virada. E fizeram a diferença. Faço questão de lembrar isso para reforçar que não somos apenas espectadores passivos.
Somos protagonistas e temos responsabilidade pelo enredo e pelo desfecho da história. Qual é o nosso papel nesse cenário? Reinventar nossos negócios, identificar oportunidades e fazer a engrenagem girar. Acredito que precisamos ler menos manchetes e mais entrelinhas. Ler o que não está escrito e exercitar a capacidade de analisar criticamente, sem nos deixarmos abater por situações que, de tão repetidas, tornaram-se crônicas na política brasileira.
Não se trata de ser pessimista, nem otimista. Mas sim realista. Porque, como diz o provérbio: “O pessimista se queixa do vento, o otimista espera que ele mude, e o realista ajusta as velas.”
Denis Mello
Diretor Nexion Executive Education